Sobre Imagem e Performance

Publicado em 11/07/2025

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Você pode voltar ao passado,mas não há mais ninguem
Nas redes sociais, a função dos 'amigos' é primariamente intensificar o narcisismo ao direcionar atenção, como consumidores, ao ego exibido.

Nos últimos anos, a musculação deixou de ser apenas um hábito de saúde ou estética pessoal e passou a ocupar um lugar central na vitrine digital. O que antes era uma prática silenciosa, hoje se funde com outros nichos — de vlogs de baladas a discursos de coaches — formando um pacote de estilo de vida regrado,estético e, principalmente, performático. Isso não seria um problema em si, se não fosse pela forma como a imagem do corpo ideal passou a moldar não só desejos, mas também frustrações coletivas.

A exposição constante de físicos hipermodelados criou uma ideia distorcida do que é um corpo normal. Basta observar: se compararmos com o padrão de soldados de outros tempos — homens menores, mas secos e fortes — perceberemos como a noção do que é um “bom corpo” se deslocou para algo esteticamente exagerado, muitas vezes artificial. O problema não está apenas na existência desses corpos, mas na forma como eles são apresentados: como se fossem produtos acessíveis, bastando esforço e disciplina. Só que não são.

Boa parte dos influenciadores que expõem esses corpos omitem fatores fundamentais da equação: o uso de anabolizantes, acompanhamento médico constante, tempo livre, estrutura privilegiada. Quando mencionam essas coisas, fazem com tom de piada, ou falam por alto, como se não fosse relevante. Essa omissão não é inocente. Ela é parte do espetáculo. Ao esconder os bastidores, transferem a responsabilidade do impossível para quem assiste — que, tentando seguir os mesmos passos, se frustra, se cobra, ou recorre a soluções perigosas para tentar “alcançar”.

A musculação, como prática pessoal, exige tempo, paciência, técnica, escuta do próprio corpo. Mas o que se impôs no lugar foi uma estética meritocrática que coloca o resultado como única medida de valor. Não importa o quanto você se esforça: se não chegou lá, é porque você falhou. Essa lógica, além de injusta, desonesta, ignora que quem está nas redes vive disso — treina quando quer, dorme o suficiente, come exatamente o que precisa, tem quem o acompanhe. Já o cidadão comum enfrenta trânsito, jornada dupla, pouco tempo, e o cansaço que sobra no fim do dia. E ainda assim se cobra com a mesma régua.

Esse modelo de comparação não para no corpo. Ele contamina o comportamento, o vocabulário, o jeito de falar, vestir, se mover. Todos começam a parecer versões de um mesmo molde. Até nas academias, mesmo entre quem nem segue esses perfis, já existe uma pressão ambiente: os olhares, os julgamentos silenciosos, as piadas disfarçadas de “zoeira”. O influencer debocha do iniciante, e o iniciante já chega constrangido, como se estivesse devendo um resultado que mal teve tempo de começar a construir.

O mais perverso é que essa engrenagem funciona com a cumplicidade de ambos os lados. O influencer esconde seus atalhos e finge que só disciplina resolve. O público finge que acredita, e cobra de si mesmo um resultado que sabe, lá no fundo, que não vai alcançar — pelo menos não da forma como é vendido. Essa mentira coletiva é o que mantém o ciclo girando.

No fundo, o problema não é o corpo em si, nem o treino, nem a estética. É a lógica de espetáculo que tudo engole.